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    sexta-feira, maio 12, 2006


    Pobres seres que somos. Lançados no mundo cheio de incertezas ainda somos vítimas de coincidências inexplicáveis que tentamos explicar através da existência de um sentido oculto. Mas, nem disso temos certeza e nem mesmo é suficiente para gerar a traqüilidade que tanto buscamos. Além do mais, a morte nos espreita impondo seu inexorável limite à nossa ilusao de eternidade. Não temos todo o tempo do mundo para fazermos o que temos ou desejamos fazer. Muitas vezes, é tarde demais.

    Os temas morte, sentido, arrependimento, sonho, desejo, solidão, chance, esperança, medo, renascimento, ódio, perdão, desculpas e culpas atravessam como dardos pontiagudos o magnífico filme Magnólia, escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson com música de Aimee Mann. A menção a autora da trilha sonora não é mera formalidade. O próprio diretor, no encarte do cd da trilha sonora, reconhece que seu filme é uma espécie de adaptação das músicas da compositora, como se faz com um livro. Dois momentos importantes do filme, é verdade, giram em torno de duas canções onde a música fica quase em primeiro plano. Deixaremos para mais adiante um comentário maior sobre estas duas cançoes.

    O filme começa com a narraçao de três incríveis coincidências que o narrador se recusa a aceitar que foi mero acaso. A mais incrível de todas é a que nos conta como um suicídio mal sucedido tornou-se um homicídio bem sucedido. Um rapaz pula do alto de um prédio. Três andares abaixo, um casal discute violentamente, como de hábito. São seus pais. A mulher aponta uma espingarda para o marido e atira. Neste exato momento, passa caindo o filho que havia saltado de cima do prédio. O tiro acerta seu abdomem e ele cai morto sobre uma rede de proteção que dias antes fora colocada pelos operários que fariam a manutenção do edifício. Em resumo, se o tiro não tivesse acertado sua barriga, ele teria sido salvo de sua tentativa de suicídio. Mas as coincidências não param por aí. A arma que os pais apontavam um para o outro estava sempre descarregada. A bala que inadvertidamente se encontrava no gatilho, fora colocada um dia antes pelo próprio filho, pois não agüentava mais aquelas intermináveis discussoes. É como se tudo houvesse sido anteriormente planejado e as pessoas envolvidas tivessem desempenhado seus papéis com absoluta precisão. Todos no momento e no lugar exatos. Nem um segundo a mais, nem um milímetro a menos. O espanto causado por esta extrema sincronia leva-nos, como ao narrador, a insistir na tese de que não foi uma mera coincidência.

    Jung nos fala da sincronicidade, o princípio de conexão acausal. Ou seja, dois ou mais eventos se aproximam de forma que alguma conexão entre eles possa ser estabelecida, embora esta conexão não tenha sido criada por quaisquer meios causais, por exemplo, a força do pensamento. Imaginemos. Passei o dia inteiro querendo encontrar uma determinada pessoa. A força do pensamento fez com que realmente eu a encontrasse. Esta maneira de raciocinar não está de acordo com o que Jung entende por sincronicidade, pois ele enfatiza a acausalidade da conexão entre os eventos. Por isso, ele afirma que a sincronicidade é uma coincidência significativa. Contudo, da maneira que entendo Jung, a sincronicidade não significa nada, nós que presenciamos os fatos é que significamos. Uma conhecida minha, certa vez, com dificuldades em encontrar um apartamento para alugar, passou em uma praça e, naquele exato momento, um ninho de passarinho caiu na sua frente. Segundo seu relato, naquele instante, ela teve certeza que iria encontrar um apartamento para alugar. Esta sua certeza surge de um ato interpretativo de uma experiência sincronística. Ela poderia ter interpretado o ocorrido também como um sinal de que não encontraria um apartamento ou, pelo menos, que sua busca seria longa e dolorosa, visto que o passarinho também teria perdido sua casa. O evento sincronístico simplesmente coloca frente a frente dois seres com problemas de moradia em uma espécie de solidariedade da natureza. Como esta coincidência significativa será interpretada por nós estará sujeita a todos os riscos, desvios e incertezas de qualquer processo interpretativo. É justamente aqui que residem todas nossas angústias, nossas problemáticas, nossa criatividade, nossas chances. Como recebemos os fatos, como recebemos os outros, como somos recebidos por eles? Tudo isso habitado por um sem número de processos interpretativos incapazes de criar uma certeza estável e suficientemente duradoura, embora esta possibilidade seja realmente uma possibilidade. Para lidar com isso, recorremos a infinitos esquemas de controle, subterfúgios, auto-enganos, ilusões, etc., que nossos mestres Freud e Jung nunca se cansaram de descrever.

    Após o relato das coincidências o filme prossegue com uma rápida e entrecortada apresentação dos personagens cujos destinos e estratégias de sobrevivência iremos acompanhar por quase três horas de duração. Neste momento surge a primeira música cantada por Aimee Mann. De autoria de Harry Nilsson, seu título é One e sua letra nos fala que o um é o número mais solitário que existe. Depois do um, dois é o número mais solitário que existe. Além do mais, diz também que o não é a experiência mais triste que alguém pode ter porque um é o número mais solitário. Seu último verso quase explica porque o um é o número mais solitário que existe, porque ele é muito pior do que o dois, porque o um é um número dividido por dois. O um, sonho de unidade e auto-suficiência, é dividido, diria originariamente, pela necessidade do dois, por nossa necessidade do outro. Porém, como o dois também é um número solitário, nem isso, muitas vezes, basta. O Outro não é aquele outro que imaginamos. Como dizem Levinas e Jung, o outro é sempre o totalmente Outro. Continuamos solitários quer como um quer como dois, embora, seja possível acontecer o contrário. E acontece. Como veremos, o verbo acontecer tomará uma dimensão quase que mágica próximo ao final do filme.

    Enquanto a música One é cantada inúmeras vezes, as personagens são gradativamente apresentadas. O primeiro a aparecer é o guru sexual Frank Mackey (Tom Cruise). Autor do livro "Seduza e Destrua" que ensina técnicas para dominar qualquer mulher. "Respeitem o pinto e domem a xoxota" é seu orgulhoso lema. A técnica principal é a linguagem. Através dela podemos penetrar nas experiências íntimas e nos desejos e sonhos de uma mulher. Falando coisas que ela quer ouvir, um homem pode conquistá-la. Aqui entra o problema da interpretação. A linguagem, meio que utilizamos para nos fazermos entender, é habitada, segundo Jacques Derrida, por um tal número de parasitas que a torna sujeita a inúmeros desvios e perdas. Tudo que falamos não passa de promessas, mas nada garante que as promessas sejam verdadeiras ou que serão cumpridas. Naturalmente, Frank Mackey se acha protegido de ser vítima de uma mulher que também lhe fale e toque seus desejos e sonhos. O que ele propõe é uma operação de guerra onde o homem terá sempre o controle.

    O próximo personagem é Jimmy Gator (Philip Baker Hall). Ele é apresentador do programas de perguntas "O que sabem as crianças?", onde 3 crianças são desafiadas por 3 adultos. Com 12000 apresentações em 30 anos de carreira, Jimmy Gator é a imagem da honradez da televisão. Mas sua vida real não se conforma a este ideal. Logo no início do filme, procura a filha Claudia para tentar uma reconciliação. Conta para a filha que está com câncer, mas é expulso do apartamento sob berros e xingamentos. No final do filme descobriremos porque este ódio da filha pelo pai.

    A seguir vem Donnie Smith (William H. Macy), um antigo campeão do programas de perguntas para crianças, mas que é, atualmente, um imbecil fracassado e desajeitado. Embora, tivesse dominado um grande número de informações quando criança, este conhecimento inútil em nada o ajudou na vida. Despreparado e carente, perde o emprego e se individa para comprar um aparelho de dentes, que não precisava, só para chamar a atenção do barman pelo qual estava apaixonado. Sua frase favorita é que realmente tem muito amor para dar, só não sabe onde colocá-lo.

    Earl Partridge (Jason Robards) é o produtor de televisão que protagoniza o agonizante paciente terminal que luta (agon, em grego) com suas culpas e arrepentimentos. Pai de Frank Mackey, é odiado pelo filho por tê-lo abandonado aos 14 anos de idade. Sofre muito, a ponto de ter que tomar morfina, alterna momentos de inconsciência com instantes de profunda lucidez onde compartilha com o dedicado enfermeiro Phil Parma (Philip Seymour Hoffman) suas angústias e último desejo: reconciliar-se com o filho. Phil Parma, que em nenhum momento expõe suas culpas e arrependimentos, funciona com um bom ouvinte das fraquezas humanas. Sua atitude receptiva, afetiva e cuidadosa com Earl Partridge representa a compaixão pelos desencontros humanos que ele busca remediar aproximando pai e filho.

    Linda Partridge (Julianne Moore) é a jovem esposa de Earl Partridge. Casada, a princípio, por interesse, descobre, diante do moribundo marido, que o ama. Passa todo o tempo muito nervosa, agressiva, tentando reparar seus erros e traições. Tenta o suicídio, mas é salva a tempo.

    Claudia Wilson Gator (Melora Walters) é a filha do apresentador Jimmy Gator. Ferida emocionalmente, distanciada de um contato afetivo com os pais, refugia-se em seus vícios, tv e cocaína. Sente-se incapacitada de despertar amor e, por isso, afasta-se quando surge a oportunidade, pois teme que ninguém será capaz de suportar sua verdade.

    Jim Kurring (John C. Reilly) é o honesto, devotado e idealista oficial de polícia. Viúvo e inseguro, não consegue encontrar um novo amor. Sente-se humilhado quando perde sua arma. Seu lema é sempre tentar fazer o bem, ser bom. Por isso, ao se apaixonar por Claudia, é capaz de superar todas as suas tentativas de fazer fracassar o encontro.

    Stanley Spector (Jeremy Blackman) é o garoto gênio que está prestes a quebrar o recorde do programa de perguntas e ganhar o polpudo prêmio em dinheiro para a alegria de seu sempre apressado e desinteressado pai. Apaixonado pelo conhecimento e pelos livros revolta-se com a produção do programa e recusa-se a responder a pergunta que lhe daria a vitória, para desespero de seu pai.

    Estas são as personagens que ajudarão a desvelar uma gama de sentimentos dos quais somos, não apenas vítimas, mas, igualmente, seus co-autores. Todas elas se tocam em algum ponto da história, revelando suas estratégias de sobrevivência através de situações verossímeis (ou seja, situações absurdas mas possíveis de serem realizadas, a começar pelas incríveis coincidências no início do filme) e plenas de metáforas.

    Somos seres complexos. Isso é ao mesmo tempo nosso fardo e nossa riqueza, nosso desespero e nosso sentido. James Hillman em um importante texto sobre traição faz uma leitura interessante da história bíblica de Adão e Eva. Resumindo muito seus argumentos, para Hillman o fato de Eva, a imagem arquetípica da traição por excelência, ter nascido da costela de Adão, aponta para o potencial de traição e auto-traição que trazemos conosco. A todo instante Evas estão brotando de nossas costelas, gerando novas e conflituosas situações existenciais, muitas vezes além da nossa capacidade de elaboração e entendimento.

    Earl Partridge, por exemplo, alternando estados de lucidez e inconsciência, devido à morfina que tinha que tomar para suportar a dor causada pelo câncer, representa exatamente esta confusão e complexidade que nós somos. Oscilamos entre extremos de consciência e inconsciência, onde algo se apodera de nós sem sequer percebermos. Nesse momento nasce uma nova Eva inocentemente pronta a ceder à menor tentação. Alguns chamam isso de desejo; outros, de manifestações arquetípicas; tem aqueles que colocam toda a culpa em um ente chifrudo e negativo; outrora, chamavam de intervenções de deuses múltiplos. Não importa o nome. Importa sabermos que somos impotentes. Não há, porém, saída, caso contrário correríamos o risco de ter nossa vida tão calculada, tão pré-estabelecida que o resultado sería um empobrecimento generalizado. Por outro lado, isto não nos exime da responsabilidade em relação às nossas ações. De qualquer modo, a oscilação de Earl Partridge entre confissão e anestesia toca o âmago das nossas questões éticas em relação ao Outro. Dói muito reconhecer nossos erros e fraquezas. Daí a necessidade de morfina que possui o efeito colateral - o filme enfatiza isso claramente - de fazer desaparecer todas nossas características pessoais. Anestesiados, caminhamos com nossas personas, nossas máscaras, como disse Jung, achando que elas são nossa única verdade. A grande dor de Earl Partridge não era aquela causada pelo câncer, mas aquela causada pelos seus atos. Esta dor só passa através da confissão e do perdão. Por isso seu desejo e sua necessidade de falar com seu filho abandonado. De resto, ficamos no lugar do bom enfermeiro, o bom ouvidor, testemunhando e ouvindo as frases mais lúcidas e verdadeiras que, muitas vezes só a proximidade da morte nos faz ter a coragem de proferir.

    O filho abandonado, como já sabemos, é Frank Mackey, o superhomem que ensina aos homens não necessitarem de mulher. Incapaz de elaborar a morte da mãe e o abandono do pai estabelece uma verdadeira declaração de guerra contra a nossa necessidade de nos relacionarmos com o Outro. Encarna isso na mulher e faz dela o inimigo que deve, ao mesmo tempo, ser desejado e desprezado. Lembram-se? "... devemos respeitar o pinto e conquistar as xoxotas!" Não há espaço para o amor, pois, no séquito de Afrodite, como muito bem retrata uma pintura renascentista, caminham, junto ao desejo, ao prazer e à alegria, a loucura, o ciúme, a inveja, o desespero, a saudade, o medo. No amor não há nenhuma garantia de reciprocidade. Posso desejar alguém ardentemente e não ser retribuído. Situação que nos leva à beira do desespero. Para evitar isso, portanto, não podemos amar. Temos que dominar, controlar, subjugar... e inventar uma história que nos ajude a convencer que estamos no caminho certo. Frank Mackey inventou uma outra história familiar, mais leve e digerível, mas falsa. Quando confrontado com a verdade trazida pela jornalista que o entrevistava, aquela fortaleza auto-suficiente desaba. Sua persona de machão começa e derreter revelando sua verdadeira face: "adoslescente-abandonado-pelo-pai-que-teve-de- cuidar-sozinho-de-sua-mãe-doente". Esta figura ainda estava viva e com muita saúde em seu interior.

    Como o filme utiliza o recurso das coincidentes sincronicidades para acelerar os acontecimentos, é justamente nesse momento em que sua alma sangra pela ferida causada pela verdade inaceitável que ele recebe a notícia que seu pai deseja revê-lo. Este encontro é um dos mais belos e intensos momentos do filme.A princípio xinga o pai e sente prazer em vê-lo sofrer. Logo depois, chorando e desesperado, pronuncia este verdadeiro oxímoro: "não morra seu filho-da-puta".

    As histórias dos outros personagens correm por trilhas semelhantes. Donnie Smith acha que colocando um aparelho nos dentes chamará a atenção de seu amado. Rimos do ridículo da situação, mas não a vejo de forma diferente daquilo que nós todos fazemos. Se eu comprar o carro X terei sucesso. Se eu possuir aquele vestido da famossa griffe francesa vou conseguir o homem que tanto desejo. Etc., etc., etc. São truques, que muitas vezes funcionam, mas que, principalmente, ajudam-nos a esquecer de como os encontros são difíceis e instáveis. Claudia Wilson Gator, por exemplo, desesperada em busca de alguém que a ame e cuide, descobre no policial honesto a possibilidade disto acontecer. Deseja ser verdadeira. Propõe que só falem a verdade. O risco e o medo, porém, são grandes. Prefere desistir do que tentar.

    Todas as personagens passam por um crescendo de sofrimento e tensão quando, de repente, começam a cantar "Wise Up" de Aimee Mann, que fala de nossos arrependimentos necessariamente tardios, fala de nossos desejos de outrora que agora não conseguimos mais suportar. Conclui: nada disso irá parar até que tenhamos os olhos abertos.

    Mas, engana-se quem pensa que Magnólia seja um filme pessimista. Muito pelo contrário. Ele nos diz que é possível haver mudanças, que é possível o perdão, a compreensão, que os encontros são possíveis, que é possível abrir os olhos. Nos apresenta estas possibilidades através de um fato inusitado: de repente começa a chover sapos. Esta cena aparentemente absurda dá sentido e esperança ao final da história. Por vezes, é verdade, por meio de situações absurdas podemos encontrar o sentido das coisas.

    Como entender esta chuva de sapos. Mais uma vez o diretor Paul Thomas Anderson é dadivoso conosco e nos dá suas pistas. Em determinado momento aparece uma cena em que Stanley Spector, o garoto gênio, aparece estudando em uma biblioteca. Está cercado de livros de metereologia. Quando começa a chuva de sapos, ele aparece novamente, novamente estudando, e percebe o que está acontecendo. Com olhos arregalados, exclama: "isso acontece, é uma coisa que acontece"! A chuva de sapos não é da ordem do milagre, do absurdo, da impossibilidade. Existem vários relatos que se estendem até a Grécia antiga onde descrevem-se chuvas de sapos, peixes e outros pequenos animais.
    Se é possível chover sapos, se isso é uma possibilidade real, também é possível nós nos encontrarmos, nos perdoarmos, nos amarmos.

    Junto com a chuva de sapos, Frank Mackey perdoa seu pai Earl Partridge; Jimmy Gator e Linda Partridge são salvos de suas tentativas de suicídio; Donnie Smith arrepende-se e devolve o dinheiro que havia roubado de seu antigo emprego; Claudia Wilson Gator se reencontra com sua mãe; Stanley Spector pede ao seu pai mais respeito e carinho; Jim Kurring, o policial, não aceita a desistência de Claudia e a procura. Esta é, inclusive, a última cena do filme. Ao fundo a voz de Frank Mackey fala que se tudo isso fosse em um filme ele não acreditaria, é real. Fala mais: "o passado já era para nós, mas não nós para o passado". Só revisitando-o que poderemos lidar verdadeiramente com ele. Mas o rosto sorridente de Claudia chorando de emoção por alguém ter rompido sua barreira de medo e isolamento nos dá esperança e confiança. Que chovam sapos, muitos sapos!
    Carlos Bernardo
    posted by iSygrun Woelundr @ 2:05 PM   0 comments
    SHINE, O BRILHANTE!
    quinta-feira, maio 04, 2006

    Shine: O Brilho Excessivo e o Pai Devorador

    Comentário ao filme “Shine"

    O filme Shine descreve a história real do pianista australiano David Helfgott. O Diretor George Withers tece um roteiro comovente, à base de flashbacks, desde a infância de David, sua evolução musical, seu encontro com a loucura e a música de Rachmaninoff, sua restauração e relativa adaptação psicológica graças ao amor e à compreensão humana.
    Para criar esse clima de passado-presente em contínuo intercâmbio até a volta à Austrália e o encontro final com o pai, Withers lança mão de três atores diferentes, para representar David criança, depois jovem e talentoso pianista e finalmente homem adulto.
    A infância de David já é pontuada pela terrível figura de um pai devorador, que como o deus Crono da mitologia grega, devora seus próprios filhos logo após nascerem, isto é; impede que qualquer processo criativo se desenvolva próximo de si.
    Logo após concurso de piano infantil na escola, quando David toca peça dificílima para sua tenra idade, uma Polonaise de Chopin, na verdade uma escolha ditada pelo orgulho de seu pai, sua genialidade chama a atenção. Na verdade David acaba por não vencer o concurso, por duas razões: a dificuldade de execução da peça, e a segunda, e mais importante, o fato de nunca ter tido um professor. Seu pai sempre o impediu de ter um, por pura inveja destrutiva.
    Na verdade, o filme enfatiza o poder destrutivo do pai sobre o desprotegido David e sobre toda a família: o pai totalitário e repressor centraliza todas as decisões; reprime violentamente a mãe de David e suas irmãs, que são incapazes de qualquer ação independente.
    No tocante a David, fica claro que toda sua promissora carreira fica comprometida pelo pai devorador. Aparentemente zeloso o pai, na verdade, oculta a todo o tempo uma profunda inveja destrutiva contra o filho. Se a mãe e as irmãs tornam-se figuras totalmente apagadas e temerosas da violência do pai, forma-se um outro triângulo: David, seu pai e o professor de piano, o sr. Rosen, que percebendo o talento nascente de David, tenta protegê-lo do pai.
    O professor consegue penetrar por algum tempo na cápsula defensiva do pai, que finalmente cede e permite que seu filho tenha aulas, e seu desenvolvimento musical passa a ser mais bem orientado. David pode assim crescer musicalmente e chamar a atenção do meio musical.
    O pai conta repetidamente sua estória para David. Julga que David é um rapaz de sorte, pois tem uma família. Não é como ele, que perdeu vários parentes na guerra e teve que tornar-se um refugiado judeu, para escapar ao holocausto. Particularmente, relata que sempre gostou muito de música e quis ter um violino. Para isso economizou muito. Seu pai, ao descobrir que comprara um violino, o destruiu, não permitindo que estudasse música.
    Aqui a relação geracional das patologias mentais aparece de forma clara. O pai de David não resolvera bem seu complexo paterno, carrega consigo sua Sombra - como os junguianos denominam esse conteúdo não resolvido- e a projeta em seu filho.
    A Sombra é um conteúdo indesejável para a consciência, sujeita a contaminações pela psiqué coletiva e facilmente projetável. Além disso, a Sombra está carregada de complexos mais ou menos defendidos, pouco accessíveis ao ego.
    Não tendo elaborado sua Sombra, constituída de sofrimento, repressão, mortes e impossibilidades, é mais fácil para o pai de David construir um sistema de defesa baseado no orgulho, onipotência e racionalização, na qual o mundo é visto sob uma ótica distorcida.
    Segundo a visão do pai de David, ele é o melhor dos homens, embora não tenha tido grandes oportunidades por causa dos desastres da guerra e, principalmente, de seu pai. Mesmo assim, julga-se um ser superior, pois conseguiu construir uma família, segundo ele, equilibrada. Em certo trecho do filme, começa a se comparar com o sr. Rosen: “Quem ele julga que é? Mora só, foi incapaz de construir uma família sólida como eu. Ele não é uma pessoa confiável…"
    Entretanto, o pai de David não consegue impedir seu gradual crescimento musical sob a orientação segura de um profissional, que muito o admira. Chegamos na estória de David ao ponto culminante de seu período infanto-juvenil: há um convite para morar nos EUA, convite formulado pelo famoso violinista Isaac Stern; o prefeito e a comunidade locais promovem fundos para que David deixe a Austrália para ir para os EUA.
    Nesse instante, fica clara a inveja do pai: após uma aparente concordância com a partida de David; mesmo após o recebimento de uma carta na qual uma família americana se dispõe a recebê-lo, o terrível pai- Crono se manifesta, jogando a carta ao fogo, com a argumentação de sempre: “você é um rapaz de sorte, tem uma família”, e ainda: “se você for para a América, vai destruir sua família…"
    Mesmo com a insistência do sr. Rosen, a repressão do pai predomina. A cena chocante na qual David defeca na banheira, ilustra um quadro de intensa regressão, acentuado pela violentíssima e repugnante agressão física por parte do pai.
    David só será capaz mesmo de fazer uma tênue oposição ao pai mais tarde, quando é ajudado pela doce sra Katherine, que conheceu numa homenagem dada pela Sociedade Franco-Soviética. David é levado a esse local pelo pai, que critica os americanos, por não serem como ele, por nunca terem sofrido.
    Entretanto o contato com Katherine, o feminino criativo, acaba por ser altamente estruturante para David. Katherine conta sua estória: escritora, filha de escritor, seu pai nunca lhe dava atenção, mergulhado em seus escritos. Expulsava-a mesmo de seu estúdio, onde escrevia.
    Certa vez, Katherine, enchendo-se de coragem, derruba o pote de tinta de escrever sobre os escritos do pai. Percebeu nele um olhar de grande ódio, mas só assim pode desafiá-lo e superar o pai devorador. Hoje diria: “aquele foi meu primeiro ato criativo”.
    Katherine consola David com sua própria estória, e lhe dá certeza que poderá também superar o pai.
    Uma abordagem psiquiátrica clássica da psicopatologia de David é impossível, pois o filme não nos fornece dados como incidência prévia de psicose na família e outros dados epidemiológicos que são importantes na avaliação de um quadro psiquiátrico.
    Após o surto psicótico ao terminar o concerto no 3 para piano e orquestra, de Rachmaninoff, em Londres, ficamos sabendo que David se submeteu a seções de ECT e tratamento psiquiátrico. Foi, entretanto, capaz de voltar para a Austrália, onde seu pai o recusa a vê-lo.
    A internação psiquiátrica se segue, mostrando um David apresentando sintomas evidentes de uma psicose afetiva. Uma enfermeira diz em certo trecho do filme que David apresenta os sintomas de uma psicose esquizofrênica, diagnóstico com o qual não concordamos. A verborragia é acompanhada de um humor exaltado, com comunicação extremamente fácil. David exerce mesmo uma intensa sedução sobre as pessoas; é carinhoso, abraça e beija homens e mulheres. Não há sinal da vida normalmente interiorizada presente nas esquizofrenias.
    Mas a psiquiatria tradicional deixa sua marca negativa no filme, quando os médicos proíbem David de tocar piano, pois seria esse dinamismo que pioraria seu estado mental. A estória- que é real - demonstra o contrário, pois a música acaba por ajudar David em sua organização psíquica, e ao final, embora não haja cura completa, há uma melhora e uma acentuada adaptação ao meio social.
    Uma questão delicada se coloca, desde o início da estória de David: seria seu pai-devorador, capaz de ativar uma psicose em seu filho, pela intensa repressão e proibição? Sem dúvida é temerário dizer que sim, pois uma psicose envolve fatores genéticos, disposição familiar e muitos outros elementos, além da psicodinâmica familiar.
    O filme dá particular ênfase à relação pai-filho destrutiva, mas a chamada disposição individual não deve ser deixada de lado. A ênfase única na psicodinâmica pode levar pais a uma culpabilização nem sempre cabível, em situações de psicoses onde apenas o meio e situação emocional não podem responder isolados por estados de tamanha gravidade.
    Do ponto de vista simbólico, o pai de David representa o patriarcalismo típico de nossa cultura judaico-cristã em sua forma mais perversa. Eu o chamo pai Crono pois é Crono (ou Saturno) que devora seus filhos ao nascerem. Durante toda a trajetória de David quem o salva é o feminino, quando presente e atuante. Sua mãe e suas irmãs estão mergulhadas no ventre do pai devorador, e pouco fazem para seu resgate.
    Katherine é o elemento ativo que retira David temporariamente do pai e o leva aceitar o convite da Real Academia de Londres. As luvas que lhe dá são um objeto transicional importante nesse ritual de iniciação.
    O feminino é elemento fundamental no processo criativo; em literatura os franceses do século passado a chamaram la femme inspiratrice, os gregos na antiguidade já prestaram culto às Musas, produtoras da criatividade, filhas de Zeus e Mnemósine, a deusa memória.
    Somente a criatividade poderia ajudar David a elaborar o pai Devorador; na linguagem mítica dos arquétipos junguianos só através da Anima, do feminino no inconsciente, pode o homem elaborar o pai negativo. Aqui a criatividade se opõe nitidamente ao que Freud chamou de compulsão de repetição, a essência da pulsão de morte.
    O feminino vai reaparecer na figura de Silvia, que o abriga em seu restaurante, e por acaso vem a descobrir seu talento pianístico. Mesmo a figura da terapeuta ocupacional que se espanta que tão famoso pianista freqüente sua sala de terapia ocupacional no hospital, já prefigura o encontro com Silvia e, mais tarde, com sua futura esposa, a astróloga amiga de Silvia.
    O filme coloca em oposição nítida, dois polos arquetípicos da vida humana: criatividade x patologia.
    Há um certo nível de identificação David/Rachmaninoff. Após o fracasso de sua Sinfonia no 1, seguido de uma frustração amorosa, Rachmaninoff mergulhou na esterilidade da não-criação, em perigosa estagnação. É atribuído a um psiquiatra russo, Mikhail Dahl, ter ajudado Rachmaninoff a reencontrar sua criatividade; após depressões e perigosos câmbios de humor, toda a claridade criativa do compositor reapareceu em seu genial concerto para piano e orquestra, no 2. O de no 3, entretanto, que Rachmaninoff estreou em triunfal viagem aos Estados Unidos, é o de maior dificuldade de execução, principalmente em seu movimento final.
    Sergei Rachmaninoff foi um dos maiores compositores de nosso século, e, sem dúvida, um dos maiores pianistas de todos os tempos. A estória verídica de David Helfgott nos ensina muito da criatividade musical de Rachmaninoff, mas principalmente de relações humanas; como a compreensão e o afeto podem restaurar fragmentos de personalidade destroçados pela incompreensão
    Walter Boch
    posted by iSygrun Woelundr @ 4:35 PM   0 comments
    O SHOW DE TRUMAN

    Leitura psicanalítica do filme O Show de Truman, o Show da Vida
    C. Guillerme Torres

    O tão elogiado O Show de Truman, o Show da Vida (The Truman Show), filme de Peter Weir (autor de grandes filmes como O ano em que vivemos em perigo, A testemunha e Sociedade dos poetas mortos) é uma parábola, uma metáfora que comporta várias leituras.
    A mais imediata delas é a ligada ao poder da mídia eletrônica, especialmente a televisão, que assusta tanto e tantos. Arnaldo Jabor, recentemente, relativizando tal temor, lembrou uma das grandes preocupações dos anos 60/70, quando se dizia que a Rede Globo iria controlar ideologicamente o país. Hoje em dia, esta ameaça já não aflige ninguém. A Globo, apesar de manter sua hegemonia, luta para se manter como a preferida dos miseráveis, disputando ferrenhamente os telespectadores com Ratinhos e Leões, ao mesmo tempo em que sua audiência de elite se volta para a TV a cabo. O mesmo ocorre nos Estados Unidos, onde as grandes redes perderam a hegemonia, totalmente esfaceladas pela TV a cabo que, por sua vez, se estilhaça em dezenas de canais.
    Muito bem, se não corremos o perigo de UMA única rede nos dominar, persiste um perigo ainda maior, o da hidra de mil cabeças, dos muitos canais a nossa disposição – ou, diria Truman, o filme de Weir, que dispõem de nós.
    O roteiro do filme mostra como a vida de Truman foi transformada numa novela que está no ar desde o momento de seu nascimento e que é vista mundialmente. Truman ignora que sua vida é uma ficção planejada minuciosamente pelos criadores do programa, representados por Christof.
    Uma tese sustentada pelo filme seria como a televisão invade inteiramente a subjetividade, confunde público e privado, aprisiona os sujeitos numa vida alienada, ditada pelos valores do mercado, onde a felicidade está atrelada à posse de bens de consumo e a própria identidade pessoal se esfuma frente às identidades por ela fornecidas, especialmente aquelas veiculadas pela publicidade, que forjam imagens de masculinidade ou feminilidade, de sucesso e triunfo, sempre caudatárias do consumo.
    Não há propriamente uma novidade nesta argumentação repetida à exaustão pelos teóricos dos meios de comunicação de massa. Sem negar a imensa importância que a TV exerce sobre todos o tempo todo, pensamos ter ela um papel menos onipotente do que aquele que habitualmente se lhe atribui. Neste sentido discordamos do de resto excelente trabalho apresentado por Jorge Ahumada (1998) na Sociedade Psicanalítica de São Paulo quando parece creditar ao uso deliberado das cenografias do nazismo e stalinismo veiculados pela TV o poder de engendrar tiranias.
    A TV é expressão de uma formação sócio-econômico-psicológica que se destaca por privilegiar a superficialidade e evitar as dores do pensamento, formação cultural que fornece muito mais tempo de Rambo que de Bouillon de Culture.
    A forma como a psicanálise compreende a constituição do sujeito, baseada em identificações com os objetos primários (pai, mãe), de certa forma afasta a mídia como um fator estrutural constitutivo no ser humano, como alguns autores equivocadamente tentam estabelecer.
    Um exemplo disto pode ser encontrado na sempre presente e legítima preocupação dos pais quanto aos malefícios que a televisão pode provocar em seus filhos, pois seria ela um perigoso fator instigador da violência, da agressividade, da sexualidade mal dirigida, etc.
    Parece-nos que a questão fica incompletamente formulada, pois não leva em conta o fato de que as crianças não estão expostas apenas à televisão. Afinal, antes da TV elas estão expostas a uma influência extremamente mais importante, definitiva e constitutiva que é aquela trazida pelos próprios pais, cujas imagens vão servir de pólos identificatórios para as crianças, e cujas atitudes e desejos conscientes e inconscientes vão plasmar o clima onde a criança está totalmente imersa e receptiva.
    A tão temida "influência maléfica" que a televisão teria fica num papel necessariamente secundário. Do ponto de vista prático, compete aos pais regulamentar o acesso da criança à TV. Assim como é necessário proteger as crianças de uma série de perigos dos quais ainda não sabem se defender sozinhas, o mesmo vale para a TV. Crianças que têm livre acesso à televisão poderiam ser entendidas como crianças abandonadas à própria sorte, sem controles e cuidados. Lamentavelmente, seu número só tem crescido nos últimos tempos.
    Mas não são só as crianças as vítimas do televisor: é o mundo dos adultos que, no filme, é dominado pelo Show de Truman. Vemos que são os adultos os que ficam plugados na telenovela, validando com sua assistência enlouquecida e acrítica a evolução de uma experiência alucinada de clonagem humana.
    Leitura psicanalítica
    A outra leitura que a metáfora trazida pelo filme permite é uma leitura psicanalítica sobre o que acabamos de falar acima - a constituição do sujeito humano.
    Tausk, discípulo de Freud e seu analisado, descreveu nos pacientes esquizofrênicos algo que ele chamou de aparelho de influência. Estes pacientes sentiam que sua vida era observada cuidadosamente, que seus pensamentos eram comentados, que seu interior era vasculhado, assim como o espaço que eles habitavam era supervisado por forças estranhas e alheias a eles.
    No inicio do filme, uma inquietação percorre a platéia: é Truman um esquizofrênico, um louco com delírio de influência?
    A psicanálise postula que durante a constituição do sujeito psíquico os outros (a começar pelos pais) se instalam em seu interior como palavra e pensamento, como cuidados que o sujeito realiza consigo mesmo, como uma série de aspectos normativos e instrumentais que passam a constituir seu próprio ser.
    Tudo isso que se origina no exterior, passa a ser ego-sintônico, ou seja, algo que o sujeito sente em sintonia com seu ser e cuja origem não pode mais ser traçada até suas origens externas. Perde-se o elo que o une ao real.
    Na loucura, essa influência constitutiva não é assimilada. O louco vê muitos de seus próprios desejos de cuidados e de atenção sob a forma de alucinações, como se esses desejos estivessem sendo realizados no presente por forças reais externas, como o foram na infância pelos pais. Só que o ego vê esses desejos realizados como estruturações persecutórias.
    Quando isso acontece, não se teria realizado uma adequada simbolização desse passado constitutivo e, por isso, ele retorna como real. Através desse aparelho de influência o sujeito encontra uma forma de perpetuar esse passado de influências benéficas (ou não) e a proteção dos pais. Isto seria conflitante com os desejos de crescer e de se abrir, por identificação com os pais, a experiências exogâmicas, o que caracterizaria a normalidade.
    Em outras palavras, a história de Truman mostra a passagem entre a alienação no desejo do Outro e a assunção do próprio desejo, o estabelecimento da própria subjetividade.
    A relação entre Truman e a produção do show - a televisão onipresente e onipotente, que o controla em tudo com suas cinco mil câmaras de filmar, impondo-lhe seu desejo, impedindo-lhe qualquer autonomia e escolha - seria uma possível representação da relação estabelecida por uma mãe narcísica que toma seu filho como prolongamento dela própria para realizar seus desejos onipotentes. Uma mãe que não tolera se separar do filho, e o filho que luta entre o desejo de ficar na segurança da cela esplêndida e controlada, onde é uma eterna criança brincando de viver, e o desejo de sair dali e assumir sua própria subjetividade, seu próprio desejo, arriscando-se a enfrentar as dores do viver.
    Vemos no filme como todas as tentativas de autonomia apresentadas por Truman são imediatamente rechaçadas, invalidadas, desautorizadas, desestimuladas. Posteriormente ele é impedido e punido por tais tentativas. Fobias e sentimentos de culpa lhe são induzidas com este intuito. As imagens catastróficas da companhia de turismo desestimulam qualquer desejo de sair, de ir para longe.
    O que falamos até aqui caracterizaria uma psicose. Uma relação narcísica, não castrada, fundida com o objeto primário, uma impossibilidade de assumir o próprio desejo, a própria subjetividade.
    Vemos em Truman, entretanto, como este sistema narcísico começa a ruir na hora em que o personagem se interessa efetivamente, espontaneamente por uma mulher. É a emergência de seu próprio desejo, não mais aquele decorrente da manipulação externa. Truman estabelece sua relação exogâmica pela escolha da mulher estranha ao meio endogâmico, cuja imagem vai organizando aos poucos, numa colagem de lembranças e afetos, até constituir um objeto amoroso (objeto a, fonte de desejo?). É interessante notar como o acesso a essa mulher é severamente reprimido, como vemos no encontro na praia, quando ela é sumariamente levada por homens. Seria uma menção à interdição edípica, que organiza a saída primeira do narcisismo, a segunda se daria na adolescência.
    A fala final de Christof, o criador do programa, tentando fazer Truman ficar no "útero", assegurando-lhe que a vida lá fora é também cheia de mentiras e enganos, e que aqui ele está mais protegido é a tentativa final e frustrada feita pela "mãe" para impedir que o "filho" possa ele mesmo fazer as descobertas boas e más que o "mundo externo" inevitavelmente trará, que ele realize sua relação exogâmica.
    Neste sentido, Truman seria uma metáfora tanto da situação inicial da constituição do sujeito, como também da sua crise maior, aquela que se dá na adolescência.
    Truman nos permitiu mostrar uma formação psicótica, que seria aquela onde ele fica encerrado no "útero", na relação narcísica, sem ousar sair. Vimos também a solução "normal", com a saída exogâmica, que é o final feliz do filme. Falaremos agora de uma saída neurótica. Referimo-nos àqueles sujeitos normopatas, que parecem viver uma vida adulta com uma mulher com a qual aparentemente estão casados. Mas isto é apenas na aparência, pois a mulher opera como mãe, é vista pelo paciente como uma mãe. Esta versão as if ("como se", aparente) da maturidade é assustadoramente freqüente em nossos dias em casais de determinadas classes sociais.
    Não sabemos quanto influem para sua prevalência os prolongados períodos de educação em extensão constante desde o Renascimento, assim como, por outro lado, a submissão infantilizante ao poder da mídia como aparece metaforizado em Truman.
    Uma outra idéia que Truman nos faz pensar é que a estrutura relacional narcísica que ele ilustra costuma se instalar nas mais diversas terapias, em função das repetições transferenciais, criando - às vezes - impasses que são resultantes de sua elaboração inadequada.
    Supostamente as boas análises são aquelas mais demoradas. Somente elas efetivamente teriam conseguido as integrações necessárias, as reparações, as elaborações da posição depressiva, da estruturação simbólica, o atravessamento do fantasma, etc. Mas é de se pensar até que ponto não ocultam elas - as terapias muito longas - distorções e perversões, onde ao invés de ajudar o analisando a sair da relação narcísica, fazem o contrário, restabelecem com ele tal relação e a mantém indefinidamente.
    posted by iSygrun Woelundr @ 4:30 PM   0 comments
    SIN CITY, the movie

    Goldie.... Cheira Como O Cheiro De Oughta Dos Angels...
    É uma explosão de preto e o branco com espirros de vermelho. Mas não é o sangue - embora há algum sangue que é vermelho - mas o vestido vermelho impar e o batom vermelho cintilante! a imaginação é um contrapeso dos caráteres sombrios, da violência (e há muita ali) e da possibilidade para a redenção - seja pelo amor ou por outros meios. A película, se passa em um lugar chamado CIDADE BAIXA (AS TIRAS em preto e no branco) são três histórias interconectadas. Primeiro envolve a ex-prostituta goldie com um cara disfigurado chamado Marv (encenado por Mickey Rourke - totalmente impressionante) que depois que uma noite com de amor romantico com Goldie (imagem acima por um artista), acorda ao lado de seu corpo inerte, morto. Com a lei e todos contra ele, Marv sai para vingar sua morte.
    a segunda parte envolve um outro criminoso nomeado Dwight (Clive Owen) e sua batalha com policial corrupto chamado Jackie Boy (Benicio Del Toro) e essa batalha conduz a uma situação tensa entre a líder das prostitutas da cidade e os polícias.
    A terceira história envolve um policial envelhecido chamado Hartigan (Bruce Willis) e sua batalha para proteger uma menina chamada Nancy de um pedofilo, que tem no pai um político poderoso. que tem um monologo nesta película que contem muita verdade sobre os americanos no general. É um exemplo perfeito a respeito de porque George W. Bush começou dizendo o que disse em sua campanha de reeleição. Este filme deve ser visto por todos. A única desculpa é um estômago fraco, mas se você amar a ação e a violência, você amará este filme. A violência, de certa maneira é feita belamente. Você vê a razão atrás das ações dos personagens. Não são matanças injustas ou sem nenhuma razão.
    livre tradução do blog: http://medusascastle.blogspot.com/
    posted by iSygrun Woelundr @ 4:24 PM   0 comments
    MATRIX, Muito mais que luz ou magia


    Depois de alguns minutos assistindo Matrix (The Matrix, de Andy e Larry Wachowski. EUA, 1999, 144 min.), não há como não se impressionar. Os motivos para esse abalo podem ser variados, e os mais impactantes podem até ser os efeitos especiais. Ora, é um filme de ficção científica, nada mais natural que ser envolvido pela magia da arte gráfica antes de qualquer outra coisa. E se isso não acontece espontaneamente, é necessário desarmar-se de preconceitos em relação ao uso desses artifícios - exercício este que boa parte das pessoas, entre elas os mais ávidos cinéfilos, já praticam inconscientemente, para depois se dizerem impressionados ou decepcionados. Matrix é diferente. É um erro comentar efeitos especiais isoladamente, ou sobrepô-los às complexas referências, discreta e inteligentemente esmiuçadas pelos irmãos Wachowski.
    Primeiramente, não queira assistir ou analisar Matrix relevando uma suposta inverossimilhança que justifique história, ação e efeitos. Matrix não se trata de relevâncias. Vejamos o filme da maneira mais agnóstica possível. Alguns fatores que são apresentados no filme de maneira ríspida, podem não ser bem interpretados ou podem ser desconsiderados, tanto do ponto de vista conceitual como prático.
    Para que se absorva tamanha minuciosidade com o filme, vale lembrar que Matrix é, primeiramente, uma inovação no gênero de ficção científica. E é mais inovador pelos debates que proporciona, do que pelos recursos tecnológicos que coleciona. Matrix traz originalidade na sua linguagem, principalmente. No modo de transmitir um ponto de vista e de sensibilizar através de uma cautelosa crítica ao desenvolvimento das tecnologias relativo às comunicações. Isso justifica uma concentração e uma reflexão um pouco mais extensos sobre o filme - entender o que se constrói pelas intenções subversivas e diretamente provocantes de Andy e Larry Wachowski é um exercício, no mínimo, interessante - quando não revelador. Isso não significa, porém, que seja a melhor e maior obra de ficção científica de todos os tempos - são outros os méritos de Matrix que justificam tal enveredamento.
    A predestinação
    Os porquês da tamanha superioridade e confiança colocados na personagem principal.
    Hoje, o contato que temos com o ciberespaço já é algo revolucionário. O desenvolvimento desse tipo de tecnologia é tangente às mais diferentes atividades profissionais, e coloca-se como um dos mais fortes avanços dos meios de comunicação na história. Estudos acadêmicos e científicos diversos mostram o quanto estamos atuantes e próximos a este acontecimento, e o colocam, sem medo, como a maior revolução tecnológica já ocorrida desde a Revolução Industrial. Um dos maiores teóricos atuais sobre as novas tecnologias de informação, o cientista social Manuel Castells, vai mais longe, colocando a revolução pela qual passamos hoje como a mais importante, a mais decisiva de todas, apontando que "ao redor deste núcleo de tecnologias da informação, (...) uma constelação de grandes avanços tecnológicos vem ocorrendo, nas duas últimas décadas do século XX, no que se refere a materiais avançados, fontes de energia, aplicações na medicina, técnicas de produção (existentes ou potenciais, como a nanotecnologia) e tecnologia de transportes, entre outros." [CASTELLS, Manuel - A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.] Castells afirma em sua obra que, paralelamente à abrangência de ciências que tal revolução atinge, é também a que aglomera dentro de sua pirâmide desenvolvimentista o maior número de pessoas, direta ou indiretamente.
    Dentro deste fato, podemos levantar no mundo real algumas personagens de destaque nessa atividade, como programadores de software, processadores de dados, engenheiros eletrônicos e operadoras de telemarketing. Mas entre eles, com certeza, os mais marginais, precipitadamente temidos, muitas vezes astuciosos, são os hackers. Usemos, aliás, o termo hacker na concepção moderna da palavra, entendendo-se por eles como navegantes piratas, muitas vezes invasores ou ladrões de conteúdo informacional na Internet. Conforme explica Howard Rheingold, na trajetória histórica das comunidades em rede analisada em A Comunidade Virtual [RHEINGOLD, Howard - A Comunidade Virtual. Lisboa: Gradiva, 1996.], hacker já foi uma denominação usada pura e simplesmente para jovens programadores de computador nas décadas de 60 e 70, nos Estados Unidos. Neo (Keanu Reeves) é um hacker do estilo "invasor". Na verdade, no filme, ele é um dos melhores entre eles, o que não o faz, ainda, ser a personagem principal. Ao contrário, quando retirado da matrix, Neo encontra outros hackers, que também descobriram a matrix, e são tão bons quanto ele. Aliás, Neo teve sua "oportunidade" de desvencilhar-se da matrix por dois fatos que convergem num determinado ponto, envolvendo-lhe na trama que desenrola pelo resto do filme: ele acha a matrix, pouco tempo depois é achado pelos outros hackers, e perseguido pelos anti-terroristas. Jeremy Bentham, citado também por Rheingold, trabalhava estes segregados tipos de manipulação e observação ainda no séc. XVIII, formando o modelo teórico da escola panóptica que, como diz o estudioso, adapta-se totalmente às possibilidades reais das tecnologias modernas: "Os mesmos canais de comunicação que permitem aos cidadãos de todo o mundo comunicar entre si, permitem igualmente aos governos e interesses privados saber coisas sobre cada um de nós." [RHEINGOLD, Howard - A Comunidade Virtual. Lisboa: Gradiva, 1996.]
    Mas se não é o simples fato de ser um privilegiado entendedor do ciberespaço que o torna especial, o que coloca Neo como herói entre seus comparsas é uma singularidade: sua predestinação. Os mais céticos, alarmados pela parcela mística num contexto totalmente tecnológico, criticam este aspecto do filme. Mas não seria natural que, num filme sobre xadrez, por exemplo, um personagem inspirado em Kasparov fosse eventualmente o herói, justamente por ser alguém especial entre tantos enxadristas do mundo, diante do mortal inimigo, o computador Blue Ocean? Ou que, no século XVII, Galileu fosse alguém especial entre os cientistas da época, um "predestinado", derrotado na temível batalha que travara com a Santa Inquisição, por profanar a astronomia? Exemplos como estes, por mais simplórios que pareçam, são ao menos ilustrativos, além de outros inúmeros destacáveis ao decorrer da história das ciências, das artes, dos esportes, da política e religião.
    Mas os hackers, justamente por fazer parte de sua especialidade a marginalidade, não se deixam expor, e não sabemos quem são os Kasparovs e Galileus do mundo virtual. Neo é fictício, mas poderia muito bem ser realidade. E uma fagulha de espiritualidade dentro deste universo não é ofensivo, e sim só mais uma factível constatação de como estaremos sempre presos a simbologias, ainda que desenvolvamos cada vez mais nossa tecnologia.
    O apocalipse
    Uma análise das futuras possibilidades apocalípticas, e a correlação à suposta inverossimilhança do filme.
    Outra faceta do filme que é constantemente atacada por questionamentos (sobre sua plausibilidade) é o seu contexto apocalíptico. A degradação ambiental, as guerras biológica e nuclear, as pestes e epidemias são fatores que constantemente ameaçam a perpetuação da vida humana no planeta. Contra estes fatores, a ciência procura defender-se e aprimorar-se a cada dia, com destaque para as comunicações, a inteligência artificial, a genética e a cibernética. É sempre importante ter em mente que, por maiores que sejam as vantagens imediatas de tal desenvolvimento, a forma desorganizada e pluralizada com que ele se coloca é assustadora. E, considerando essa trajetória irregular, não somente no que diz respeito ao seu crescimento isolado, mas também a toda desarmonia social, cultural e econômica que a acompanha, as certezas sobre uma prosperidade tecnológica andam bem enevoadas. É desse modo que o filósofo Pierre Lévy coloca suas precauções quanto a uma análise otimista desse processo. Assim, Lévy pergunta a si mesmo como poderiam opor-se máquina e homem tão radicalmente. Não pela incompreensão da previsão, mas pelos cuidados a que ela remete. A elaboração serena e fria de tais possibilidades são sempre convergentes: "Toda a eficácia de um e a própria natureza do outro (homem e máquina) se devem a esta interconexão, esta aliança de uma espécie animal com um número indefinido, sempre crescente de artefatos, estes cruzamentos, estas construções de coletivos híbridos e de circuitos crescentes de complexidade, colocando sempre em jogo as mais vastas, ou mais ínfimas, ou mais fulgurantes porções do universo." [LÉVY, Pierre - As Tecnologias da Inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.] Nada me parece mais natural que um cenário onde, após um descomedido desenvolvimento dessas tecnologias promovidas pelo próprio homem, as criaturas resultantes desse processo se voltem contra seus criadores, justamente por perceberem que são a eles superiores, e por também constatarem que eles delas dependem para sobreviver a uma ininterrupta autodestruição da espécie.


    Pelas bases desses estudos tecnológicos, e mesmo falando de maneira mais factual, trata-se de pura observação científica. Projeções hipotéticas diferem-se de análises empíricas por sua lógica concebível, e aí entra o tipo de previsão levantada pelos autores, que lida com o simples predomínio funcional daquele que melhor se adapta aos meios oferecidos - conhecida também como darwinismo. Máquinas, como seres dotados de inteligência e de capacidade de criação, seriam totalmente independentes dos seres humanos e distinguir-se-iam destes por não prescindirem da natureza tanto quanto eles. O homem, em contínuo processo entrópico, dizima suas fontes naturais ao mesmo tempo em que a tecnologia evolui, tornando-a mais capaz e essencial como uma alternativa artificial aos recursos originais da physis. Logo, as máquinas estariam um degrau acima na evolução das espécies, e, bastando a elas uma fonte da qual pudessem tirar energia, dominariam facilmente quaisquer outros que tentassem subjugá-las. Uma vez que o próprio corpo humano é produtor de energia, seja ela cinética, térmica, potencial, etc., se mantidos em conservação, em atividade biológica constante e entretidos com uma suposta realidade (a matrix), a energia necessária estaria lá, a disposição das máquinas - de acordo, assim, com os pressupostos de interdependência de Lévy, levantando, ainda, uma especulação caótica. Assim reconstruímos o mundo pensado pelos Wachowski, onde máquinas brincariam de videogame com pessoas, enquanto tentassem aniquilar os poucos humanos que, acordados de seu estado imberbe (claridade ironicamente conquistada pelo perfil proporcionado pelo próprio ser dominante, o perfil hacker), tentariam livrar tantos outros que permanecessem em torpor. Portanto, a matrix tanto poderia ser realidade que, divagando sobre todo o caos que o homem causa e ao mesmo tempo tenta consertar, chegamos a pensar se já não estamos nela.
    Pronto. Os irmãos Wachowski já têm nas mãos quase todas as desculpas necessárias para conduzir ótimas cenas de ação e ficção. Pois uma vez que a matrix é uma simulação de computador, é totalmente compreensível que aqueles que nela se encontram conscientemente possam ter quaisquer habilidades que queiram e precisem, através de um simples upload. Mas então se levanta a capacidade sobre-humana, como pular alturas inacreditáveis e desviar-se de projéteis. Para discutir este ponto, é necessária uma abordagem um pouco mais psicológica que científica.
    O heroísmo
    O alcance das simulações dentro da matrix: pura hemorragia ficcional ou detalhada constatação de realidade?
    Então, temos agora em discussão a superação daquilo que, por já não ser humanamente possível, torna-se inacreditável. Que extensões virtuais dos personagens atuem na matrix, e que dentro destas simulações estes acúmulos de informações binárias possam recorrer a um programador de computador para adquirirem, assim, maiores habilidades, tudo bem. Mas como os irmãos Wachowski se rescindem dos superpoderes de seus personagens?
    O mundo tratado pelos autores é, na verdade, um mundo de pura alienação (o que, aliás, faz parte também de um contexto ideológico do qual trataremos adiante). Lá, a simulação tanto física como psicológica, são perfeitas. A navegação pela matrix proporciona desde o mais íntimo orgasmo, até a dor mais forte que um ser humano pode sentir. Fabrica-se na cabeça das pessoas desde o nascimento da mais incendiosa paixão, até a mais desgraçada e inconsolável vontade de suicídio. E, seja lá por suicídio, acidente, doença ou assassinato, morre-se tão verdadeira e dolorosamente na matrix, que no mundo real, fisicamente, morre-se também, por pura sugestão psicológica.
    Para o grupo de hackers, tratados pelas máquinas como "terroristas", a impressão de realidade transmitida pela matrix é, no entanto, falaciosa, digna de desconfiança. Pois, simplesmente, possuem a consciência de que aquilo é forjado, e que, justamente por não se tratar da realidade, aquilo não deve ser sempre relevado. Na interpretação dos hackers, por exemplo, um simples dejà vú dá a deixa de que aquilo representa uma alteração no cenário que já estava em andamento. Esse tipo de percepção passa inerte a todos os outros seres humanos que vivem na matrix. O grupo de "terroristas", no entanto, podem se dar o luxo de dar um salto maior que o possível, por saberem que fora da realidade, numa situação inimaginável, seus saltos podem ser igualmente inimagináveis. Porém, exatamente como os outros humanos, eles possuem limitações - menores, é verdade - mas da mesma forma impactantes no mundo real, caso excedidas.
    Voltemos a Neo. Mais uma vez, os autores podem ser argumentados, pois não seria a simples predestinação de Neo que o faria mais invencível. Porém, a personagem principal passou por séries de acontecimentos enquanto vivia na matrix que, como já discutimos aqui, tornaram-lhe especial. Não por simples qualificação espiritual, mas por experiência adquirida mesmo. Como já foi colocado, Neo mereceu sua chance fora da matrix por suas excepcionais habilidades internautas. Sua bagagem e experiência nesse tipo de atividade não só lhe envolve de curiosidade - pois é a partir de uma curiosidade e uma necessidade inata de conhecimento que os hackers aperfeiçoam-se mais e mais -, como também lhe acrescenta uma notável sensibilidade. O que os autores pretendem caracterizando Neo como "predestinado" - alguém diferente dos outros que pode, na matrix, desviar-se de balas e até voar -, é atribuir a ele essa sensibilidade "digital". Neo, por atingir um maior equilíbrio emocional e por possuir essa percepção diferenciada, consegue, melhor que os outros, separar sua existência real de sua existência on-line. A certa altura, ele já não sofre mais sugestões psicossomáticas, por, simplesmente, estar extremamente consciente de sua posição dentro da matrix, e por conseguir, de maneira única, discernir que aquilo que acontece fisicamente no local são somente combinações binárias. Tanto que, a partir deste momento, Neo enxerga na matrix códigos binários formando imagens, e não mais as representações virtuais de tais códigos. Ele sabe que, apesar das sensações e estímulos ali fabricados, no mundo material o corpo permanece pensante e intacto.
    O idealismo
    Da mitologia grega à cultura digital - as referências de Matrix para a crítica ao indivíduo e à sociedade.
    Talvez, para muitos, debater a subversão implícita em Matrix seja chover no molhado. Mas seria incauto demais justificar alguns porquês formais e não se adentrar no conteúdo. Ainda mais quando se trata de algo tão substancial, como o que é expresso no filme.
    O filme, primeiramente, trata de dois tipos de mal comuns da sociedade de fim-de-milênio: manipulação e incomunicabilidade. Para tal, os irmãos Wachowski usam diferentes artifícios, e os aplicam de maneira sinuosa.
    O próprio figurino, que inspira um tipo de relação menos complexa, vai desde os ternos impecáveis dos agentes antiterrorismo, até a vestimenta negra e renitente dos hackers, melhor forma de definir a batalha de uma facção libertária, porém receosa, contra outra já estatizada, consistente, que pretende somente manter a ordem por esta compreendida e estabelecida.
    Em meio a essa luta, quando colocada à frente de Neo a chance por uma opção existencial, Morpheus (Laurence Fishburne) lhe oferece duas pílulas. Uma, vermelha, um placebo, o conformismo, a volta ao pseudocotidiano urbano e à infernal ilusão material. A outra, azul, a determinação, a busca pela verdade encaixotada, substituída por impulsos nervosos de sensações fabricadas por computador. A forma "farmacêutica" da escolha ainda traduz uma opção entre a cura e o alívio psicológico: uma pílula transfere conhecimento, a outra, esquecimento. E a escolha, por si só, não passa de uma realidade meramente hipotética, com as formas e os alcances planejados por Morpheus.
    Os nomes das personagens, aliás, tem muito a dizer isoladamente, desvinculados de suas funções coletivas e de suas circunstâncias potenciais. Morpheus é originalmente o deus grego dos sonhos, filho do sono e da noite. Em Matrix ele é o senhor das verdades, pois representa a possibilidade de libertação da simulação imposta pelas máquinas, ou a possibilidade de reanimação de um torpor, de um sonho. Trinity (Carrie-Anne Moss), ou em português, Trindade, é a representação da esperança por uma misteriosa união, conceito primeiramente católico (caracterizado pelo Mistério da Santíssima Trindade: a união do Pai, do Filho e do Espírito Santo). A união de Trinity é prevista como a chegada do predestinado, do messias, do salvador, o Filho. Simbolicamente, quase um Jesus de Nazaré, salvo o misticismo puramente psicológico amarrado ao enredo do filme, tirando, assim, o peso da religiosidade gratuita ou desnecessária das costas de Neo. E este, a personagem principal, surge como a novidade, o novo, ou novato, transportador de desgraças ou esperanças. Aquele em quem são feitas as últimas apostas, o último voto de confiança. Tanto que os conflitos entre a sua real capacidade de mudança e a tentativa de reafirmação perante a uma provável especulação pictórica são constantes. A figura de um Oráculo, responsável por essa colocação ao hacker, representa a ponte entre a alienação e a constatação, e fecha o círculo idealista, trazendo uma harmoniosa aparência de neutralidade. Colocada como uma visionária, um Oráculo é, na mitologia, um contato entre deuses e mortais; no filme, aquela que tem consciência da matrix mas, ainda assim, transforma nela o seu laboratório. Lá reúne as percepções do que é real (divino) e do que é simulacro (mortal), transformando-as, através de indução e sugestão, em previsões - presságios sobre um provável futuro.


    Existem ainda dois ícones da tecnologia atual, que marcam sua presença durante todo o filme e entrelaçam as personagens ao contexto caótico e desesperançado que vivem. Ainda que pareçam ser tratados de maneira óbvia, tais ícones são fundamentais para a evolução do raciocínio crítico, e nestes tempos atuais seria inevitável que fossem estes os instrumentos de argumentação ilustrativa que os Wachowski usassem.
    O primeiro deles é o telefone. A evolução desse aparelho, desde os tempos do telégrafo, pode ser considerada a mais importante no que diz respeito à possibilidade comunicativa espacial. Os marcos dentro dessa evolução são variados: a discagem a partir do domicílio (que extinguiu as telefonistas), a ligação a longa distância, a discagem em tom, a ligação via-satélite, o telex, o tele-facsímile, a conexão por fibra óptica, até chegarmos ao modem - que possibilitou conectar o computador a uma linha telefônica, e daí para a Internet. É à sombra deste alcance comunicativo que ficam as aparições do telefone no filme. O log off das personagens na matrix são realizados através de telefones, muitas vezes os salvando de situações-limite, de momentos de extremo perigo on-line. Perceba que o telefone não precisaria ser, de modo algum, o instrumento de desligamento da matrix. Esta explicação pode ter ficado um tanto obscura no decorrer do filme mas, teoricamente, dentro de um simulacro digital, os pontos de conexão com o mundo off-line poderiam ser quaisquer: aqueles que emitissem ondas de rádio, por exemplo, ou qualquer outro tipo de sinal. Também é o caso de telefones celulares (também usados pelas personagens), que usam sinal digital, diferentemente dos telefones públicos, que usam tecnologia analógica. A telefonia foi só um instrumento para que se estabelecesse um portal de diálogo entre estes dois universos. Este instrumento foi escolhido não só pelos próprios hackers (pode-se trabalhar com a hipótese de que se foi instituído que o log off seria realizado através da unidade telefônica mais próxima, por questões de compatibilidade de informação digital), mas principalmente pelos Wachowski, pois, como já foi dito anteriormente, é o aparelho cuja evolução melhor representa, paralelamente, a evolução das telecomunicações. Assim, procura-se dizer que a comunicação é necessária. Reforçando, literalmente, a máxima de Abelardo Barbosa: "quem não se comunica, se estrumbica.” A falta de comunicação é um primeiro alerta colocado pelos diretores. Talvez, pela maior comunicação entre os indivíduos humanos, a destruição de tantos sonhos e utopias não teriam acontecido. Agora, a comunicação entre os mesmos que ainda resistem conscientemente garante sua sobrevivência.
    O outro ícone que sofre referências seguidas é a televisão. Ela é uma constante no filme. Sua presença é quase que imperativa, e quando não, é ao menos apreensiva. Através dela enxerga-se tanto a realidade, como o simulacro da matrix. Os dois fatos, astuciosamente colocados para Neo através do primeiro modelo delas (o tubo chamado de Orticon, da RCA, que fora industrializado a partir de 1945 [VALIM, Maurício - Tudo sobre TV. http://users.sti.com.br/mvalim, 1998.]), questionam a razão de ser desse aparelho: formador ou manipulador de opinião? A sua presença constante na rotina de todo o mundo ajuda a fornecer diversas informações, tornando-se assim determinada pessoa apta a escolher seu ponto de vista, a formar o seu apoio idealista? Ou tal presença somente lida com informações filtradas, que guiam o pensamento individual para uma coletividade crítica, que concorda com os transmissores dessa mesma informação? Ou, ainda, seria a televisão um grande amontoado de ambigüidades, de contradições, uma óbvia causa do pós-modernismo, que serve somente para alienar e emburrecer seus espectadores, e torná-los inertes a qualquer critério de seleção cultural? Apesar de tais perguntas estarem à espreita da descoberta no decorrer do filme, as respostas não estão. As respostas estão ao nosso cargo, ou seja, a própria platéia tem - exatamente como colocado nas questões - a chance de formar uma opinião concisa, ainda que favorável ou não; ou de simplesmente deixar o cinema achando que se trata de mais um filme de ficção científica, comentando os efeitos especiais; ou, simplesmente, não pensar nada, restando-lhe a inércia conseqüente de diálogos confusos e cenas rápidas e barulhentas. A deixa pessimista dos diretores é explícita, porém não ostensiva. Porque a alternativa de salvação à comunicação unilateral da TV é a mesma que tira Neo de seu torpor: a rede. Citando mais uma vez Rheingold, ao lembrar como fora a introdução do Big Sky Telegraph nos EUA (um dos projetos educacionais que, pioneiramente, visava estabelecer sistemas de BBS nas escolas da região rural de Montana, em 1988): "Este conceito de comunicação multilateral (...) possui um potencial muitas vezes ignorado pelos conhecedores das anteriores revoluções comunicacionais. A maioria deles encaram os meios de comunicação de massas como meios unilaterais, em que massas representam uma numerosa população de consumidores que pagam para obterem informação fornecida por um reduzido número de indivíduos que lucram com o controle desse canal de informação: é o paradigma da difusão." [RHEINGOLD, Howard - A Comunidade Virtual. Lisboa: Gradiva, 1996.] Um paradigma multilateral, no entanto, demorou-se por ser aceito - e agora, que já parece estabelecido, representa para muita gente uma alternativa aos meios convencionais e viciados. No filme, a Internet é a criatura que mais uma vez se junta ao seu criador, após já ter lutado contra ele. Ela não é confiável - e até à clarividência de Neo, é só parcialmente dominada -, mas neste mundo retratado pelos Wachowski é a única saída (e também a única entrada) para fazer valer uma sobrevivência consciente. E digna.
    Últimas considerações
    Matrix é um filme complexo, porém não é um filme pretensioso. Como já foi dito, e vale a pena ser sublinhado, trata-se de uma obra com a capacidade de conquistar por diferentes aspectos: efeitos, roteiro, atores, ação, idéias, música, edição, etc. E é admirável até por cada um destes isoladamente. Não é um filme perfeito, e nem a melhor obra de ficção científica de todos os tempos, mas sem dúvida possui uma linguagem e, principalmente, uma crítica sócio-política que tiveram pouco destaque na imprensa, ou mesmo na própria comunidade cinéfila. Seja lá pelos Wachowski (o passado cinematográfico dos irmãos não é lá muito brilhante), ou pelo Keanu Reeves (que também possui um bom time de críticos mordazes), ou mesmo pelo lançamento do Episódio I de Star Wars - é fato que alguns meandros do filme passaram desapercebidos.
    Por isso vi a necessidade de redigir algo um pouco mais aprofundado sobre o filme. Mesmo que pareça tedioso um texto longo, com citações e um ritmo acadêmico, muitas vezes este se faz mais eficiente para trabalhar com um raciocínio lógico e linear. Encaro a probabilidade de recusa e até desculpo-me para aqueles que, corretamente, levantam a bandeira da simplicidade em textos sobre cinema. Embora a finalidade aqui tenha sido outra, aproveito-me do pretexto de debate para também chamar a atenção para alguns pontos trabalhados subjetivamente nas críticas até então.
    Também peço desculpas pelo atraso em entregar o texto. O filme ainda não saiu de cartaz, mas já faz três meses que estreou, o que deveria ter me obrigado a esforçar-me um pouco mais na finalização da análise. Infelizmente, o tempo que tive em julho para que, junto a Rodrigo Flores, pudesse dar os primeiros passos para colocar no ar o Cine-Debate, e as outras atividades profissionais e universitárias que me asfixiaram nos últimos dois meses, acabaram por fazer com que desse sempre um "empurrãozinho" nesse texto.
    Agora, irremediavelmente, está aí. Espero que traga novidades, ou ao menos discussões. O importante é fazer valer a proposta inicial: levantar opiniões. E que sejam injúrias ou elogios, mas que ao menos sejam.
    Bibliografia
    CASTELLS, Manuel - A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
    RHEINGOLD, Howard - A Comunidade Virtual. Lisboa: Gradiva, 1996.
    LÉVY, Pierre - As Tecnologias da Inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
    VALIM, Maurício - Tudo sobre TV. http://users.sti.com.br/mvalim, 1998.
    Apêndice
    Abaixo vão alguns filmes que serviram, de uma forma ou de outra, como fonte de inspiração para certos aspectos estéticos explorados por Larry e Andy Wachowski em seu filme. A mistura de clássicos e filmes de ação que só valeram a bilheteria reflete propositadamente o pastiche de Matrix. Confira aqui os títulos e a cotação:
    ● 2001: uma odisséia no espaço (2001: a space odyssey, de Stanley Kubrick. Inglaterra / EUA, 1968, 156 min.)
    Cotação: *****
    ● Punhos de Dragão (Tang shan da xiong, de Wei Lo. Hong Kong, 1971, 100 min.)
    Cotação: ***
    ● Alien, o oitavo passageiro (Alien, de Ridley Scott. EUA, 1979, 117 min.)
    Cotação: ****
    ● Blade runner, o caçador de andróides (Blade runner, de Ridley Scott. EUA, 1982, 117 min.)
    Cotação: *****
    ● O Exterminador do futuro (The Terminator, de James Cameron. EUA, 1984, 108 min.)
    Cotação: ***
    ● O segredo do abismo (The abyss, de James Cameron. EUA, 1989, 140 min.)
    Cotação: **
    ● O vingador do futuro (Total Recall, de Paul Verhoeven. EUA, 1990, 113 min.)
    Cotação: ***
    ● O demolidor (Demolition Man, de Marco Brambilla. EUA, 1993, 110 min.)
    Cotação: *
    ● Os Doze Macacos (Twelve Monkeys, de Terry Giliam. EUA, 1995, 129 min.)
    Ighor Ribeira

    Demetrius Abba
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    posted by iSygrun Woelundr @ 4:15 PM   0 comments
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